Uma seta transportada na mão da testemunha
O Espaço Vazio, Peter Brook
Voltar ao espaço vazio será regressar à linha de partida. E voltar, aqui, não será tanto regressar atrás no tempo, mas reencontrar o lugar do teatro. E, para Peter Brook será sempre um lugar partilhado, entre quem vê e quem dá a ver.
À primeira vista, a edição portuguesa de O espaço vazio traz o sabor de um reencontro e apresenta-se já recoberta com o estatuto dos clássicos: é publicada quarenta anos após a edição original e inscreve-se no contexto social e teatral dos anos 60. Nesse sentido, peca por tardia e, naturalmente, nestes quarenta anos já foi lida por quantos a quiseram encontrar. No entanto, faz sentido trazer esta obra ao dia, na medida em que é determinante a acessibilidade em português a obras-base sobre artes performativas, assim como Peter Brook é um encenador activo e presente, continuando a moldar o território teatral com a sua experiência e experimentação.
Mas, sobretudo, em O espaço vazio, é o discurso de uma testemunha que importa descobrir. Não só pelo olhar datado, mas pela visão pessoal, atenta, reflectida, culta. O início do texto é exemplo da forma como orienta as observações com o seu pensamento: «Posso chegar a um espaço vazio qualquer e usá-lo como espaço de cena. Uma pessoa atravessa esse espaço vazio enquanto outra pessoa observa – e nada mais é necessário para que ocorra uma acção teatral.» A partir daqui o texto estrutura-se em quatro blocos temáticos (o Teatro do Aborrecimento Mortal, o Teatro Sagrado, o Teatro Bruto e o Teatro Imediato) e, em cada um, Brook descreve e disserta sobre o teatro: da Royal Shakespeare Company ao Living Theatre, dos happenings a Grotowski, passando por diversos autores, para além das histórias de vudu haitiano ou o excelente exemplo dos escravos do México - ou não tenha Peter Brook contribuído para uma certa “globalização” das artes perfomativas, presente ainda nos seus espectáculos.
A análise de cada caso tem por prumo a eficácia da comunicação teatral. O excerto citado vale como uma axioma nesse sentido e diz bem João Mota (numa entrevista sem perguntas mas com valiosas passagens sobre a sua experiência como actor com Peter Brook): «O espaço vazio é mais do que um espaço cénico: é um espaço interior”. Não um regresso ao passado, um momento anterior, mas um lugar interior. Trata-se de pensar a comunicação teatral e, em última análise, a comunicação humana que, no espaço-tempo teatral, se torna um instante de partilha.
Será ainda interessante inscrever O Espaço Vazio junto de outros clássicos teatrais pelo seu carácter vivencial, empírico (Stanislavski, Meyerhold, Brecht, Grotowski). Fala a “voz da experiência”, de quem esteve lá, a voz da testemunha. Como as palavras de João Mota. A literatura sobre teatro está cheia de perspectivas biográficas, de “Memórias” de inúmeros actores, e isso dever-se-á, talvez, à humanidade desse acto comunitário. É por isso que o teatro pode acontecer em qualquer parte e, quando acontece, «cria memória» (J. Brites). A passagem do Teatro do Aborrecimento Mortal para os outros tipos de teatro é a passagem de um espaço cheio (de artifícios) para espaços vazios, isto é, interiores. Ainda assim, a testemunha Peter Brook coloca-se de forma ambígua, entre o encenador e o espectador e, em cada caso, observa a comunicação desse interior, o preenchimento desse espaço. Mas é a qualidade do seu testemunho que tornam O espaço vazio um clássico: ao mesmo tempo que data uma época fervilhante, recolhe ao interior, para pensar a memória e narrá-la do seu ponto de vista, montando o seu teatro. Um livro obrigatório na estante dos estudos teatrais mas, sobretudo, um convidado muito especial para receber na sala de estar.
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