Hostil

Hostil

Sobreviver
encenação de Lúcia Sigalho, no Teatro Municipal São Luiz


Ao entrar na sala, o nosso olhar é ocupado por duas presenças negras, dois gigantescos poliedros que se apoderam do espaço da plateia e da moldura de cena de forma desmedida, como se fossem espectadores mudos, ou animais soltos. A desmedida das dimensões dos volumes em relação às da sala e aos nossos corpos, tal como a estranheza da imagem que se deseja antropomórfica – sentados e organizados - mas que é poliédrica, e que faz derivar os corpos para a percepção do monstruoso, são manifestações do mal anónimo que se lê na série dos livros negros de Gonçalo M. Tavares. A intervenção de Manuel Graça Dias e Egas José Vieira recorre à instalação destas gigantescas peças cuja presença produz uma permanente tensão, pela desmedida das suas dimensões, e pela sua apropriação da sala, na disposição/ composição das peças e no contraste de linguagens, entre o poliédrico e o estilo decorativo curvo e harmónico da sala do S. Luiz, pressagiando o tom do espectáculo e, nesse sentido, preparando o espectador, dispondo-o ao espectáculo. As peças negras e mudas criam uma forte presença anónima mas activa e, por essa tensão do estático e do anónimo, tornam-se presenças ameaçadoras, ocupando o olhar - como se ali não estivessem –, depois, ocupando o nosso espaço público, começam a ameaçar o nosso espaço íntimo. Eles ocupam a plateia dos convivas. São intrusos.

Corpos poliédricos, presenças mudas, superfície negra, ameaça, é o que nos é dado, também, no espectáculo. Por um lado, a estrutura poliédrica - de várias faces, geometrizada - da adaptação dramatúrgica dos livros negros, suprimindo a acção narrativa em favor de uma estrutura fragmentária que sublinha o prazer aforístico de Gonçalo M. Tavares, escolhendo uma série de pequenos textos, pequenas frases, palavras, para constituir o elemento verbal do espectáculo. Deste modo, ao concentrar-se na repetição, amplificação, corte e transporte do sentido dos fragmentos, o espectáculo acaba por implicar, por um lado, a impossibilidade de uma encenação narrativa, onde as personagens tenham tempo para existir, por outro lado, a concentração da dramaturgia ao mínimo enunciável desvia a constituição de sentido da palavra para a acção e, sobretudo, na criação de um ambiente de violência, ameaça, dor, perda.

No interior vazio da caixa negra, os intérpretes começam por criar uma partitura rítmica com os fragmentos de texto, ao microfone, sugerindo ligações. Como a função é falar, os intérpretes procuram o microfone, mas como o tripé é uma espécie de corpo que exige uma postura ao corpo de quem fala, também aqui se obriga o intérprete a moldar o seu organismo à “máquina de falar”. Depois, cena a cena, este coro vai individualizando-se em personagens a traço grosso que aparecem do fundo de violência e tensão por breves instantes e aparições, em interpretações que, por vezes, roçam o gratuito. A violência procura disponibilizar. A cena em que Adelaide João atravessa um campo de combate, entre longas varas que se agitam à sua volta, assemelha-se a essa importância da passagem. Sobreviver torna-se isso, ao despojamento de sentidos e direcções até à redução das simples relações humanas, tal como na sugestiva e bem conseguida cena em que os homens se abraçam às mulheres, ou quando António Rama é soterrado por caixas vazias enquanto canta uma música francesa, apelando às memórias, ou quando Joseph Walser é humilhado pelo patrão, num momento em que a dinâmica performativa procura concentrar-se numa cena de teatro, com algum esforço.

Mas uma das perspectivas de análise mais interessantes sobre Sobreviver é esboçada a partir dessa ocupação de um espaço convencional, procurando subverter e aproveitar os lugares comuns da relação entre palco e plateia em função da instalação de uma ambiência hostil, criando fortes efeitos visuais: pela instalação dos poliedros negros, ou quando uma actriz é erguida no ar e se transforma numa gigantesca figura pelo longo vestido que desce até ao palco, quando se constrói uma grande parede de caixas empilhadas na boca de cena para se desmoronar coluna a coluna, pelo desenho sonoro envolvente da plateia e, sobretudo pela progressiva transformação do fosso de orquestra numa verdadeira fossa onde se depositam todos os detritos das cenas. Em Sobreviver, o encontro de uma linguagem performática com um espaço convencional resulta num espectáculo algo desequilibrado, reforçado pela dramaturgia fragmentária, mas onde o desequilíbrio é a premissa formal, assumida de início.










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