Cartografar

Cartografar
A Arte da Performance, do Futurismo ao presente
RoseLee Goldberg


Finalmente. Quando, na edição anterior da Obscena, a propósito do livro Raúl Brandão: do texto à cena, de Rita Martins, referi que o contexto editorial português das artes do espectáculo tem um défice de publicação de obras-base, este era um dos textos em que pensava.
Publicado pela primeira vez em 1979, em Nova Iorque, é um clássico dos estudos de performance (re)conhecido por artistas, académicos e críticos, referenciado em estudos e ensaios, tendo-se tornado uma referência bibliográfica básica e um guidebook ao qual se regressa de quando em vez. A consulta diagonal da bibliografia e do índice remissivo são por si só um princípio de estudo.

A presente edição vem juntar-se a um corpo de traduções sobre artes performativas que têm vindo a aparecer, dispersas por várias editoras e de impacto discreto, como Falem-me de amor, sobre Pina Baush (Fenda, 2006) ou O futuro do drama, de Jean-Pierre Sarrazac (Campo das Letras, 2002). Desta vez, trata-se da última revisão da autora, revisto a partir da edição brasileira. Caminhos enviesados que não impedem que a edição portuguesa de A arte da performance seja motivo de celebração e merecedora da leitura mais atenta mas, ainda assim, fica a nota de desalento. Porque as traduções não servem para tornar a leitura mais confortável.
Trata-se de criar dinamismo editorial, crítico e académico, questionando e legitimando a prática artística, influenciando-a. O que torna esta obra um texto de referência é a sua abordagem histórica, em dois sentidos. Por um lado, alinha a dispersão de apresentações, espectáculos, actos públicos, numa sequência cronológica desde o movimento futurista à actualidade (2000). Por outro lado, cartografa os acontecimentos, artistas e relações que determinaram a progressiva definição da performance como género artístico autónomo. E este é (será) o cerne do problema de uma história da performance. A performance é um objecto de estudo volátil, que tende a escapar à consolidação em objectos artísticos e conclusões estéticas. RoseLee Goldberg assume e reconhece o risco no prefácio, limitando o período histórico ao sec. XX, e fundando o ponto de vista da sua análise na importância de reconhecer estes acontecimentos como actos transgressores, testes, rupturas:
“Devido à sua postura radical, a performance tornou-se um catalisador na história da arte do século XX; cada vez que determinada escola (...) parecia ter chegado a um impasse,
os artistas recorriam à performance para demolir categorias e apontar para novas direcções. (...) uma vanguarda da vanguarda“.
Assim, substitui a exigência de definição do objecto de estudo pela narração dos acontecimentos, dos espectáculos e dos contextos em que surgiram as primeiras manifestações modernas (ou talvez já pós-modernas) de performance, antes de se chamar performance. O nome, e o seu significado imediato, são assumidos desde o início procurando-se mais a legitimação de uma linhagem histórica do que a definição. Transfere-se o critério de análise do conceito para o exemplo. Mas note-se que, tendo a performance por objecto de estudo, a selecção dos primeiros exemplos segue precisamente um critério negativo: os acontecimentos inclassificáveis.
A indefinição torna-se razão maior para iniciar a definição, a construção de uma história da performance do século XX, iniciada precisamente onde os actes gratuits foram mais intempestivos, na vanguarda europeia dos anos 20. Assim a digressão cronológica e temática
começa onde o século XIX parece acabar, organizando-se em dois tempos e dois mapas: as vanguardas – Futurismo, Construtivismo, Dada, Surrealismo e Bauhaus – na Europa, considerando a ruptura com os critérios de representação, narratividade, autoria, género; e a performance – no ideário que nos acompanha hoje – nos Estados Unidos, considerando a importância da arte conceptual e das novas tecnologias e, reconhecendo na influência que a performance tem para a revitalização das arts vivants e das artes plásticas, a própria legitimação da performance como género artístico autónomo.

Mas a autonomia de um género de ruptura significaria a cristalização do seu movimento. Assim, através do exemplo, do enquadramento cronológico, do mapeamento das relações de influência, o texto evita essa perda, mantendo a performance na margem dos géneros e
das definições, em permanentes movimentos excêntricos, ramificando para a música, a dança, o teatro: “Da vida que está para além das suas páginas, só conseguirá dar uma vaga ideia“. Apesar do grafismo pop que tenta sobrepôr uma dinâmica à dinâmica do texto, a história de RoseLee Golberg mantém a vivacidade de uma obra de divulgação, o rigor das referências e reafirma-se como um guia incontornável nos estudos das artes do espectáculo, desta vez em edição portuguesa.











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