Memento Mori

Memento mori [1]


Título: Salário dos poetas (1999). Autor: Ricardo Guilherme Dicke. Dramaturgia e encenação: João Brites. Assistência de encenação: Amauri Tangará. Concepção do espaço cénico: João Brites. Figurinos e adereços: Clara Bento. Elementos pictóricos: Vitória Basaia. Música original e direcção musical: João Pimentel. Assistência de encenação: Maria Abecasis. Oralidade: Ana Brandão. Corporalidade: Gonçalo Amorim. Interpretação: Cláudia Chéu, Gonçalo Amorim, Horácio Manuel, Inês Rosado, Romeu Benedicto. Técnico em cena: Luís Fernandes. Co-produção: Teatro O Bando e CIA D’Artes do Brasil (Intercâmbio Cultural Mato Grosso–Portugal). Local e data de estreia: Vale de Barris, Palmela, 23 de Novembro de 2005.




Somos esperados. Os actores, brancos e mudos como estátuas, dispõem-se pelos degraus segurando uma lanterna de água com uma cobra ou um lagarto no interior, preservados na transparência, com a vida suspensa, depois de vivida. A entrada coloca desde logo o espectáculo na dimensão ritual e solene em que os mortos parecem ganhar voz pelo tempo suficiente de contar as suas histórias.
Em Salário dos poetas, O Bando reencontra a força criativa e crítica da linguagem folclórica, ao mesmo tempo que dá continuidade a uma série de pressupostos estéticos e políticos que tem vindo a assumir. O espectáculo marca-nos com a exposição e a figuração do orgânico e do visceral, a expressão da violência e da esperança, através de um jogo teatral que recupera o princípio das “máquinas de cena”, a adaptação dramatúrgica impondo-se sobre a linearidade das narrativas originais, e a encenação das personagens segundo um princípio de “verosimilhança do artificial”[2]. Por outro lado, o espectáculo concretiza o desejo de encontro entre O Bando e a CIA D’Artes do Brasil, na encenação partilhada do texto de Dicke, escritor residente no Mato Grosso. Em Portugal, o espectáculo conta com a participação de Romeu Benedicto, da CIA d’Artes e, na futura encenação de Amauri Tangará no Brasil, o inverso, com Horácio Manuel, do Bando.
Uma vez que podemos situar o espectáculo nesse fluxo e refluxo, no regresso desmedido (mais do que em Os anjos, 2003) ao imaginário popular e na continuidade do rigor estético, considere-se a noção dos “três planos” de interpretação do actor, formulados por João Brites, não tanto para a explicitar, mas tomando-a como ponto de partida para a digressão crítica.


Corporalidade e organismos

O espaço é dominado por uma máquina de cena. Trata-se uma peça móvel que junta três escadas, cruzadas e dispostas ao alto, umas nas outras, profusamente decoradas com pinturas de Vitória Basaia, que também interveio sobre os guarda-chuvas abertos que marcam quatro pontos simétricos no espaço cénico, usados para localizar espaços e tempos diferentes. Caracterizada pelas escadas, a máquina de cena preserva a qualidade ambígua dos últimos mecanismos produzidas pelo Bando. Tal como o gigantesco dispositivo de Alma grande (2002) jogava entre o alto e o baixo, tal como o corredor de Os anjos jogava com a distância, mesmo como a curva de Ensaio sobre a cegueira (2004) implicava movimentos contrários, também aqui as escadas sugerem a subida e a descida, marcando pela altura os níveis, ou territórios, de cada personagem. Assim o general e a mulher ocupam sempre a parte de cima, e o restante elenco movimenta-se na parte de baixo. Esta rigidez da distribuição espacial contrasta com a possibilidade de ascensão que as escadas possibilitam, mas que nunca acontece, senão no fim, em que o espaço superior é ocupado por todos. Este talvez seja o sentido da “dramatografia” de Salário dos poetas, isto é, nas palavras de João Brites, “a representação gráfica da dramaturgia” (Brites 2005: 28).
A máquina de cena é ainda composta de inúmeros adereços que compõem um cenário ambíguo, entre o urbano e o popular, juntando o rádio e a televisão que emite imagens de guerra e de outros ditadores – para além do dispositivo técnico de operação de luz e som do espectáculo –, assim como peças artesanais e crânios de animais. A própria estrutura de madeira é pintada com olhos, inúmeros olhos que trazem a presença de outros olhares, os de outros oprimidos, criando uma perturbante “fantasia totémica”. Pintar um olho num objecto inanimado é uma estratégia recorrente para atribuir vida ao que não tem vida, é um gesto antropomórfico, ritual e sagrado. A máquina de cena torna-se um corpo sensível, vidente, reforçando a qualidade orgânica e visceral do texto através da linguagem folclórica[3]. Aqui, o corpo é o da máquina e os organismos são os seres que a habitam. Fica ainda a sensação de que a máquina de cena resultaria melhor num espaço natural do que numa caixa negra, irmanada ali com os elementos orgânicos.


Oralidade e oração

O romance Salário dos Poetas narra os derradeiros dias de um déspota algures na América do Sul, atingido por um tiro. Assistimos aos últimos desejos e delírios do velho sanguinário e à exposição da sua natureza cruel e obcecada pelo poder, através da relação com a sua mulher, os seus lacaios e a opressão sobre um grupo de resistentes que se juntam no bar de um turco, o Nínive, enquanto ainda luta por duas formas de eternizar o seu nome e a sua presença: primeiro, através de um livro de poemas que dá ao professor de filosofia para corrigir e transcrever; depois, tentando punir o coveiro Caravajo, arauto da condição perene do homem; por fim, chamando à sua presença uma cigana conhecida pela sua beleza regeneradora. Em todos os casos, o velho general procura alcançar o sublime, a condição intemporal do artista, ou da obra de arte, para se transformar, escapar ao destino que “o cheiro nauseabundo do corpo apodrecido” pressagia. Esta pode ser a primeira pista para o sentido da paga dos poetas, quando o sublime funciona como sublimação, revelando no texto a importância da “passagem” como movimento revolucionário, do general em relação à sua vida, daquele país em relação ao seu regime político e, como veremos, dos próprios actores em torno do totem.
O texto é marcado por uma série de referências populares e eruditas, numa estratégia comum à escrita de Dicke e ao imaginário do Bando. Por um lado, o bestiário do texto e do espectáculo estabelece-se como um paralelo à condição selvagem da opressão, reduzindo os homens à qualidade de bichos, diminuídos à sua existência orgânica, seres humanos antes de se serem cidadãos. Este paralelismo é estabelecido na relação entre a fraqueza dos populares e os pequenos animais, cordeiros e coelhos esfolados, e entre o general e o cavalo moribundo, fuzilado à frente de uma menina. No espectáculo, o princípio da narração estabelece essa analogia, quando o tiro que se ouve para o cavalo parece ser o mesmo que atinge Barahona, prostrando-o à mesma condição. Por outro lado, o texto é atravessado por uma série de referências eruditas, ligadas sobretudo à pintura, à música, à política e à literatura. É o caso do nome do coveiro, Caravajo, ou Caravaggio, da “Internacional”, das referências à Revolução Francesa, a Tolstoi, Bakunine, Pablo Neruda, Salvador Allende, Evita Péron, ou Delacroix, Lorca, Pascal, Fausto, Mozart, Verdi. Esta conjunção de referências, reduzidas quase só a nomes, introduz no texto uma qualidade programática, que devolve à ficção de um país imaginário o cunho da intervenção real. Mas a influência erudita que melhor determina uma perspectiva sobre o texto é a lenda de Arbaces: “Assurbanípal foi um monarca assírio que reinou de 668 a 625 a. C. Amigo das artes e da literatura, fundou em Nínive uma biblioteca de textos cuneiformes. Assediado por Arbaces, o seu general, lançou-se numa pira com os seus tesouros e as mulheres do seu harém”. Nos seus derradeiros dias, o velho general é assombrado pela figura de Arbaces, e dedica o seu livro de poemas a Assurbanípal. Mas não é Barahona que corre o risco de sucumbir na pira. Arbaces é ele próprio, o seu reflexo, o general que enganou a liberdade e o progresso, com mentiras e enganos, convencendo-a a lançar-se ao fogo.
Esta apropriação de referências populares e eruditas é reforçada ainda pela extraordinária plasticidade da língua. Conduzido pela situação de um espectáculo de uma companhia portuguesa a partir de um texto brasileiro sobre um ditador da América do Sul, o espectro fonético da enunciação varia desde o português ao português brasileiro, ao brasileiro do Pantanal, àquela mistura entre português e espanhol e ao espanhol. Esta familiaridade dos sons acaba por implicar uma subversão da língua, abrindo-a a palavras estranhas, que o texto brasileiro inclui ou que a enunciação espanhola dificulta, criando a sensação de língua estrangeira dentro da própria língua.
A adaptação dramatúrgica de João Brites reforça essa estranheza através de duas estratégias formais. Por um lado, através de uma estratégia semelhante à da adaptação de Gente feliz com lágrimas (2002), onde a engenhosa chave dramatúrgica consistia em dissociar os discursos do homem e da mulher em tempos separados, ele progredindo de novo para velho, e ela regredindo de velha para nova, implicando um só momento de encontro na mesma idade, pela meia-idade. Em Salário dos poetas, o tempo da narrativa é condensado nos segundos entre o tiro e a morte do ditador, como se fossem as últimas memórias, projectadas em desalinho na sua mente. Uma vez mais, o tempo fica confinado à sua condição teatral e plástica, progredindo e regredindo, condensando-se e expandido, segundo uma ordem artificial.
Deste modo, a reconstituição da narrativa atribui e distribui o texto das personagens numa ordem sequencial mas fragmentária. O Bando sempre preteriu a literatura teatral pela adaptação de textos narrativos ou documentais, substituindo o discurso directo da estrutura dialógica pelo discurso indirecto da narrativa. Em Salário dos poetas, como noutras adaptações, os excertos narrativos são organizados numa “topologia de contracena” determinando o processo de criação, mediando a passagem da literatura à encenação. Desta opção dramatúrgica resultam diversos aspectos: as réplicas dos diálogos podem não ser dialécticas, criando momentos de interpretação do texto, desde a simples distribuição dos fragmentos, à criação de ladainhas e rezas ou de uma forma coral e musical; por outro lado, as personagens não falam na primeira pessoa, mas na terceira pessoa, ou como um colectivo, distanciando os actores da identificação com as personagens: “Assim os actores aprendem a distinguir entre o que significa fazer e o que significa agir” (Mendes 1994: 82). A personagem mantém-se como uma superfície, uma imagem, um fantasma, um jogo.


Interioridade e alteridade

João Brites tem vindo a aplicar as suas noções de interpretação do actor em trabalhos anteriores: os três planos em Gente feliz com Lágrimas ou Os anjos, o olhar em Ensaio sobre a cegueira. Por sua vez, Salário dos poetas é uma das mais conseguidas aplicações da noção de “personagem intermédia”: “A personagem intermédia é uma ‘presença’ recorrente nas diversas personagens desempenhadas pelo actor, um ‘modo’ que lhe é particular enquanto pessoa e enquanto actor. Assim, a personagem é ‘intermédia’ porque, não sendo quotidiana, não é ainda ‘outra’” (Manuel 2003: 7).
Esta transformação pode ser reconhecida na excelente cena inicial. A princípio, são corpos mudos, vestidos de branco, com a cara pintada de branco, com algodão no nariz. São como mortos, poderia pensar-se. Depois, um a um, os actores são “possuídos” pelas personagens que habitam a cena: “Não são os actores que escolhem as personagens que vão assumir. São as personagens que escolhem os corpos dos actores sobre os quais vão descer” (Brites 2005b). Todos os actores são possuídos por mais que uma personagem ao longo do espectáculo, menos o actor que interpreta o General Barahona – a figura da opressão deve manter-se constante. A primeira possessão é resolvida de modo poético: os actores são acometidos por uma série de espasmos, tiram o algodão do nariz como quem volta a sentir o sangue circular nas veias e assumem a personagem. Esta é caracterizada por uma partitura definida de interpretação mas também pelo artifício – literal – de “vestir” a personagem, através da troca de figurinos.
Esta última estratégia teatral liga-se a outra que é desenvolvida ao longo do espectáculo: a “figuração” da ferida e das vísceras do general, com um lenço vermelho; o canto de ópera saindo pela boca da cantora, também com um lenço; os genitais do General; as botas dos lacaios. Esta dinâmica figurativa, quase lúdica, atinge a sua expressão máxima na cena que antecede o final, num autêntico delírio de troca de personagens, de celebração da vida numa festa de bandeiras e com a ocupação total da máquina de cena. Por fim, depois desta exaltação paródica, o espectáculo volta a assumir uma presença lenta, ritual, sentida. As personagens cobrem-se com mantos e juntam-se para orar junto às lanternas de água com animais: “vida mal vivida”. Sobre a máquina resta uma personagem, a cigana, que descobrimos ser a menina que viu o cavalo ser abatido pelo General. Se o cavalo era um símbolo de liberdade, esse destino passou nesse momento para a menina, pela violência de um tiro. Aurora, mulher sensual e cigana, torna-se a nova figura de libertação e desvio, futuro e nomadismo.
O espectáculo termina com a saudação de um novo tempo e o lamento pelo tempo passado, sublinhando a inevitabilidade dos ciclos naturais na ordem humana. É uma cena frontal, assumida, em que os actores se devem expor ao público como intérpretes e cidadãos, desiludindo o artifício teatral. Tal como no final de Alma grande, encena-se uma postura política na sequência da própria dinâmica do espectáculo, acelerando a intensidade da cena e repetindo a mensagem optimista por uma celebração ou catarse. Os actores despem as personagens. Fica a memória do sangue vertido na terra. E as palavras dos poetas, pagos pela vingança.



[1] Expressão latina: lembra-te que morres.
[2] Meyerhold afirma o mesmo paradoxo pela expressão de Pouchkine: “inverosimilhança convencional” (Meyerhold 2001: 192).
[3] Cf.:“[o folclore] no caso de O Bando é sempre acompanhado por uma arte que eu diria artificial (…) em todos os espectáculos há um elemento de coisa morta, ou deitada fora que se transforma numa outra coisa, como se quisessem prolongar a vida do objecto cénico, dar-lhe eternidade” (Listopad 2005:17).




Referências bibliográficas
BRITES, João (2005a), “Ir ao teatro como quem parte em viagem”, in AA. VV., Máquinas de cena, Porto, Campo das Letras, pp. 27-33.
– – (2005b) Programa do espectáculo Salário dos poetas, Palmela, Teatro O Bando.
LISTOPAD, Jorge (2005) “Máquinas de nada” [1988], in AA. VV., Máquinas de cena, Porto, Campo das Letras, pp. 15-17.
MANUEL, Pedro (2003), Registo do seminário de interpretação, documento elaborado para O Bando,
dactiloescrito inédito.
MENDES, Anabela (1994), “Como cresceram asas à centopeia: Uma leitura da estética do Bando sobre o
actor”, in AA. VV., O Bando: Monografia de um grupo de teatro no seu vigésimo aniversário, Teatro O Bando, pp. 179-184.
MEYERHOLD, Vsevolod (2001), Écrits sur le théâtre, Tome I (1891-1917), trad. Béatrice Picon-Vallin,
Théâtre Annés Vinght : Th XX (col.), L’Age d’Homme – la Cité, Lausanne.










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