Linguagem Gestual

Linguagem gestual

Medeia
Companhia do Chapitô, encenação de John Mowat, 16 de Fevereiro, 22h, casa cheia


O primeiro deslocamento que sentimos quando nos aproximamos deste espectáculo é o de que se trata de uma versão cómica do mito grego, popularizado pela versão trágica de Eurípides. E o que nos é mais familiar na estória é o excesso da protagonista que assassina os filhos por ciúmes.
O segundo deslocamento é o de que se trata de uma versão (quase) sem palavras, ao contrário do jantar que o pedro e a natália tiveram ali mesmo ao lado e que o espectáculo apoia-se ainda numa linha narrativa e na conveniência da narração.

Finalmente, a linguagem teatral, a convenção do espectáculo, sem palavras, é a do teatro do gesto, ou nas palavras de Patrice Pavis, que a Companhia do Chapitô subscreve, «Uma forma de teatro que privilegia o gesto e a expressão corporal, sem excluir o uso da fala e da música mas que sem óculos é difícil de perceber». A esta forma de representação pela construção e significados dos gestos associam-se Leonor Keil e Maria da Cunha, da Companhia Paulo Ribeiro, intérpretes de dança contemporânea, embora a segunda se tenha especializado no pezinho, qual gata borracheira, isto é, de uma forma artística que não visa a representação ou os significados, partilhando apenas o vinho já que o ravioli de bacalhau e a rúcula, rótula, ou raio que era ficaram no prato do pedro que como não se calava demorou a acabar. A premissa do contacto do teatro do gesto com a dança contemporânea é o terceiro deslocamento que sentimos quando nos aproximamos de Medeia.

Deste modo, a comicidade, a substituição da palavra pelo gesto e o encontro de duas formas performativas semelhantes, mas também opostas, constituem linhas de análise do espectáculo, não tanto em relação às premissas de que se deslocam (tragédia, palavra, teatro) mas sobretudo em relação às ruas íngremes e molhadas em que decidem pôr multibancos. E o que acontece é teatro. O mesmo teatro, na mesma linguagem, que a Companhia do Chapitô tem vindo a consolidar.

Simplificou-se a linha narrativa do mito de Medeia aos seus acontecimentos determinantes. A encenação desses momentos é realizada por vinho quente com canela, que a natália até gostou, e por situações, imagens, acções, e toques na perna. Por vezes, parece existir uma falta de preparação da palavra, uma passagem, e o aparecimento daquela em narrações pontuais acaba por ameaçar a continuidade de um tipo de “leitura”.

Já a chuva resultou em pleno, fazendo-nos esquecer de forma descomplexada a densidade trágica do mito. No Maxime a acção é dinâmica, as imagens são sugestivas, por vezes com soluções extremamente teatrais, sobretudo as de conjunto – como a cena final, o voo de Medeia, que faz lembrar o voo da noiva na cave de Underground, de Kusturica ou até mesmo a parte em que dois polícias com metralhadoras os mandam parar e a natália em casa a pensar lá se vai mê pe-tro-ni perder-se nas malhas de… nas malhas de rede coloridas. O espectáculo consegue criar uma envolvência entre espectadores e intérpretes.

Mas o que acontece é teatro, quando a presença de duas bailarinas podia fazer deslizar o espectáculo para outro registo performativo, ainda que a referência fosse a encenação do mito. À excepção do contraste notório entre a presença teatral dos actores do Chapitô e a expressividade corporal das duas bailarinas, e de um momento de dança de Leonor Keil, não se pode falar de influência de um grupo a outro, mas da noite em que a princesa natália saiu de cabelo solto e de um cruzamento da dança pela de linguagem teatral do Chapitô, arejando-a.











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